No ônibus (On the bus)
Na edição especial de mês das bruxas, um belo conto de terror, latino americano, que se passa única e exclusivamente no interior de um ônibus.
Se me é possível uma breve incursão no mundo da filosofia de boteco, acredito que poucas coisas são estão tão gravadas na memória coletiva do brasileiro do que o transporte público. E, indo além, digo que poucos transportes são tão familiares quanto o ônibus. Por isso, ver uma obra que o usa como elemento de terror é algo bem interessante, sendo este um dos motivos da seleção da creepypasta de hoje. O outro motivo, bem, você irá descobrir em breve.
No Ônibus

Título original: On the bus
Creepypasta de: Lucas Llinás Múnera
Origem: Creepypasta Fandom
Tradução (PT - BR) : Lucas Freitas
As ruas, estradas e vielas empoeiradas da Colômbia sempre foram um terreno fértil para mitos e lendas desde antes a chegada dos espanhóis. Histórias como “La Patasola”, um espectro lamuriento de uma perna só perdido na busca eterna por sua criança¹, ou “El Duende”², um travesso goblin de pés virados que conduz os viajantes rumo à perdição, inquietaram as mentes de viajantes por séculos. Por mais que essas lendas tenham aterrorizado quase que exclusivamente aqueles que viviam ou atravessavam áreas rurais, o crescimento urbano trouxe consigo uma nova leva de lendas enraizadas, dessa vez, naquela desconfiança primitiva que carregamos, no mais profundo de nosso íntimo, da tecnologia moderna. Um exemplo é o ônibus fantasma que supostamente ronda as ruas à noite. Segundo dizem, as jovens que embarcam sozinhas no veículo são encontradas dias depois em terrenos baldios, terrivelmente mutiladas e com o rosto congelado na expressão do horror abjeto que sentiram em seus últimos, e agonizantes, momentos.
Dito isso, visto que você certamente não é uma jovem (ou pelo menos não o era da última vez em que checou) e são 17:30h de uma tarde de terça-feira, ônibus fantasmas e duendes com deficiência são as últimas coisas que passam pela sua cabeça. Você tem usado o sistema de transporte público de Bogotá por praticamente duas décadas, e sua única preocupação a respeito dele é como o trânsito da cidade se tornou um problema insolúvel desde que o último prefeito assumiu. No entanto, como sua casa fica há quase 80 quarteirões dali, sua única alternativa é esperar até que o ônibus certo chegue, já que andar lhe faria perder o mesmo tempo que qualquer engarrafamento.
Quando o ônibus com o número que você esperava aparece, você percebe que a passagem está custando 200 pesos a menos do que o normal. Isso geralmente significa que o veículo em questão não só é velho, como também provavelmente mais desconfortável do que a maioria, mas nenhum passageiro de ônibus na história da cidade já se incomodou com algo assim. Aqueles que se consideram ricos, e portanto “acima” da gentalha que anda de ônibus, pagam sete vezes mais caro para andar por aí de táxi, e assim se tornarem mais propensos, estatisticamente falando, de serem assaltados ou roubados. Bem, são os percalços do poder, não?
Incapaz de deixar passar um bom desconto, você pechincha com o velho motorista. O homem encanecido e enrugado mantém os olhos fixos na rua enquanto pega seu bilhete e o coloca dentro da caixa. Com satisfação, você olha ao redor: agora, tudo o que falta para transformar essa viagem em algo perfeito seria um assento vago.
Curiosamente (considerando o horário), não existem passageiros o suficiente para que você tenha que ficar em pé. Alguns assentos estão vagos, então você escolhe um à esquerda, bem no meio da fila. Como não há ninguém sentado na janela ou no corredor, você suspira, feliz, enquanto se larga sobre o assento, cruzando um joelho em cima do outro. Essa viagem em particular vai ser bem curta.
O rádio do motorista está desligado e a bateria do seu telefone arriou há uma hora, então você passa o tempo encarando a janela e observando os vendedores ambulantes e as cabeças dos motoristas acompanhando as músicas de dentro de seus carros. Com o tempo, sua posição começa a cobrar o preço, e você tem que alongar as costas. É então que você começa a examinar os outros passageiros. Nenhum deles parece estar viajando em grupo, visto que todos apenas encaram a frente do ônibus em silêncio. Em comum, são todos estranhamente velhos, mas não no sentido de parecem ter passado dos 100, antes, de estarem todos próximos dos 75. Você acha aquilo um pouco estranho e, por um breve instante, a sensação de que você não pertence aquele lugar passa por sua mente. É um pensamento besta, mas, combinado ao odor particularmente forte (ainda que não necessariamente atípico) de velhice e metal que permeia o ônibus, faz com que você deseje sair logo dali. Contudo, como ainda faltam 30 ou 40 quarteirões até sua parada, você olha para a janela novamente e, se perdendo em pensamentos, deixe que sua mente vague à vontade.
Vinte minutos depois, a visão da padaria do Pacho traz você de volta ao presente. Você se levanta e caminha por entre seus companheiros silenciosos até a saída traseira, onde procura pelo pequeno botão prateado que vai avisar o motorista de que a sua parada é a próxima. Quando o encontra, acima da porta, você toma consciência de que ninguém subiu ou desceu do veículo desde sua chegada, algo particularmente bizarro considerando-se que é a hora do rush. Descartando aquilo como alguma coincidência peculiar, você aperta o botão e segura o
Você está sentado no seu assento, encarando a frente do ônibus.
O quê…o que acabou de acontecer? Você olha ao seu redor e vê que todos estão exatamente onde estavam. Fazer contato visual com eles é inútil, uma vez que todos parecem estar perdidos onde quer que suas mentes velhas os tenham levados. Você pensa em falar algo, mas decide não fazê-lo. Afinal, o que teria a dizer? Você devia estar tão fora de si que apenas se imaginou se levantando para apertar o botão da parada.
Foi isso. Você sempre teve esses devaneios que, de tão vívidos, lhe geravam confusão toda vez que precisava deixá-los. Além disso, você passou dois quarteirões de sua parada. Depois você pode chamar isso de “uma coisa bizarra que aconteceu em sua volta para casa” ou o que for. Agora, porém, você tem que descer do ônibus. Não há o menor sentido em voltar andando caso seu ponto fique muito para trás. Você (mais uma vez) se levanta do seu assento e vai até a saída traseira, agora ligeiramente incomodado pelo desinteresse estóico que os demais passageiros tem para com o mundo ao seu redor.
Ali está o botão, exatamente onde você lembrava que ele estaria. Exceto que não havia como você se lembrar dele, uma vez que você nunca esteve lá atrás; provavelmente, você apenas o viu quando embarcou. Depois de se segurar no suporte do teto (afinal, esses malditos tem a mania de parar de imediato toda vez que pedem a parada), você olha para o motorista e coloca o dedão sobre o botão
Você está sentado no seu assento, encarando a frente do ônibus.
Um calafrio cortante desce sua espinha e, no lugar de desaparecer, se espalha por cada uma de suas extremidades. Ele não vem de uma mudança na temperatura do ambiente ou de seu corpo. Não, esse é um calafrio que vem quando você sente o medo consumir sua mente, subindo mais e mais até atingir o nível em que está prestes a se tornar terror. Algo de muito errado está acontecendo ali. Você não sabe o que é, mas sabe que não quer mais ficar ali. Você quer sair. Uma solidão opressiva começa a roer sua mente; o que quer que aquelas pessoas estejam pensando, elas certamente não estão nem um pouco preocupadas com o que está acontecendo com você.
Assim sendo, você apenas decide não dizer nada e, mais uma vez, se levanta do seu assento, não percebendo que agora o fez com mais dificuldade do que deveria. Tudo o que você quer agora é sair daquele ônibus. Não só isso, ele já passou mais de dez quarteirões de sua parada, o que agora lhe parece uma distância terrivelmente longa para se caminhar. Ainda assim, isso é apenas um detalhe agora; você tem que sair desse ônibus maldito.
Enquanto caminha para a saída, uma velha senhora na fila traseira olha para você. Sua expressão não lhe diz nada, mas o modo como os olhos dela caem sobre você - sobre seu torso, para ser mais específico - fazem com que você se sinta como uma parte do veículo, e isso apenas piora o sentimento de angústia que corre por suas veias. No entanto, você sabe que não pode entrar em pânico agora. Você está na parte de trás do ônibus e, ao invés de apertar o botão, você grita para o motorista. Aos berros, pede para que ele pare, para que o deixe descer. Você diz que já apertou o botão duas vezes, mas ele não responde. Você pragueja, diz todos os modos horríveis como espera que ele morra, diz que deseja que uma grande desgraça recaía sobre sua família. Ainda assim, a porta permanece fechada. O homem não lhe escuta. Ou não se importa. Ou simples não quer que você saia. Contudo, você não se importa com o que ele quer ou não. Se agarrando às barras, você pega impulso e chuta a coluna que
Você está sentado no seu assento, encarando a frente do ônibus.
Leva um instante até que você registre o que aconteceu. Na verdade, talvez tenha sido mais do que um momento. Talvez tenha se passado um minuto inteiro. E ao mesmo tempo que percebe que o ônibus não quer que você saia, você também nota que seu joelho direito lateja com uma dor aguda e anti-natural. Foi a mesma perna que você usou para chutar a porta, e agora, você sente como se ela estivesse quebrada. Contudo, a dor se torna uma preocupação distante quando você tenta massagear o membro dolorido, pois é nessa hora que percebe suas mãos.
Essas não são as mãos de uma pessoa de 25 anos. Enrugadas como estão, carregam uma série de veias bem definidas e até mesmo as manchas que só vem com a idade. Enquanto analisa suas mãos e sobe para seus braços, um terror frio toma conta de cada canto de sua mente. Você toca no seu rosto e sente as rugas e marcas de expressão que não existiam antes. No topo da cabeça, sente apenas alguns parcos fios de cabelo. Ao deslizar as pontas dos dedos sobre seu escalpo pelado, um choque atravessa seu corpo rumo ao mais íntimo do seu ser. Seus olhos secam, esbugalhados e descrentes, e você sente um pesado nó se estreitar em sua garganta paralisada enquanto o horror toma conta de sua existência.
Você tem que sair desse ônibus maldito, e tem que sair antes que ele termine o que começou. Você se levanta com cuidado, afinal, não tem motivos para se ferir de novo, e vai até a frente do veículo, na direção do motorista. Talvez você possa conversar com ele, ou talvez você possa simplesmente espancá-lo até a morte com uma lanterna ou algo assim, já que há uma variedade enorme de objetos e bugigangas na frente do
Você está sentado no seu assento, encarando a frente do ônibus.
Leva algo em torno de cinco a dez minutos para que você comece a aceitar o que está acontecendo e entender que sua vida está se esvaindo diante de seus olhos. Suas mãos agora estão iguais às de sua avó, suas costas doem do quadril ao pescoço, e seus olhos mal conseguem ver as placas enormes acima das janelas. Até mesmo sua mente já não é mais tão afiada quanto costumava ser; leva algum tempo para que você determine que precise tentar sair novamente.
Talvez violência não seja a resposta. Talvez você possa pedir educadamente para que ele abra a porta. Talvez, se você tratar o ônibus como um ser vivo e gentil ao invés de um máquina demoníaca ele te deixe sair, talvez…
A velha está olhando para você novamente. Você percebe que ela usa uma jaqueta azul grande demais para ela; na verdade, se aquilo fosse uma blusa do mesmo tamanho, também ela estaria bastante larga para aquele corpo esquelético. Uma lágrima, pequena e hesitante, nasce em seus olhos e corre por entre os cânions de seu rosto antes de pousar em seu pulso com um senso de estranha finalidade. Ali você percebe um relógio vermelho da Totto³, um tipo de relógio que você geralmente vê sendo usado por jovens recém-saídas do ensino médio.
Você examina a porta. Dois vidros unidos por uma linha vertical de dobradiças, revestidos à direita por um emborrachado para evitar danos pelo contato. A porta está ligeiramente recurvada para dentro, e, ao perceber isso, um lampejo de esperança anima seu peito. Se você conseguir inserir
Você está sentado no seu assento, encarando a frente do ônibus.
MAS QUE PORRA MAS QUE PORRA ESTÁ ACONTECENDO COM MINHAS MÃOS ELAS ESTÃO VELHAS MINHAS MÃOS SÃO AS MÃOS DE UM VELHO, NÃO DO MEU AVÔ, DE UM VELHO UM VELHO ATRÁS DE VOCÊ COMEÇA A TE ENCARAR QUANDO VOCÊ SE VIRA PARA ELE E GRITA E AGARRA O ROSTO DELE E GRITA COM ELE PARA TE DEIXAR SAIR SAÍ ALGO DA BOCA DELE QUE VOCÊ NÃO ENTENDE SÃO OS DENTES OU SANGUE DELE E OS SEUS DENTES MEU DEUS MEUS DENTES ESTÃO PEQUENOS ELES SÃO POERIA ELES ESTÃO QUE MERDA ESTÁ ACONTECENDO HÁ QUANTO TEMPO EU ESTOU AQUI EU VOU QUEBRAR O VIDRO COM MEU OMBRO MESMO QUE ELE QUEBRE TAMBÉM EU NÃO QUERO MORRER AQUI NEM FICAR UM
Você está sentado no seu assento, encarando a frente do ônibus.
Depois de um longo tempo, você encara suas mãos. Elas são as garras encurvadas, reumáticas e cheias de sangue de uma bruxa que já viu a cota de horrores de mais de uma geração.
Uma bruxa? Essa não é bem a palavra. Uma bruxa é uma mulher, certo? Pelo menos era assim nas histórias que sua mãe lhe contava. Como aquelas de La Patasola. Seu joelho ainda doí, mas não tanto quanto seu ombro. Parece que ele foi estilhaçado. Ah, sim, o ônibus. Você tem que sair dele. Você sabe que precisa descer. Você não lembra o porquê de precisar sair, mais é de extrema urgência que o faça. É urgente. Era urgente. O cansaço toma conta de você.
Você tenta se levantar novamente do seu assento, mas seu joelho cede ao seu peso, e é apenas por acaso que você caí de volta no banco. Você precisa sair do ônibus. Você se lembra bem dos ônibus. Eram eles que te levavam para o trabalho. Você se ajeita no banco. Você vai tentar sair do ônibus. Daqui há pouco. Antes, você precisa descansar. O ônibus pode esperar.
Você está sentado no seu assento, encarando a frente do ônibus.
Você está sentado no seu assento, encarando a frente do ônibus.
Notas do Tradutor:
1 - Confesso que não conhecia essa versão da lenda, que aproxima a “patasola” de outro mito latino americano bem conhecido: “La Llorona”. Na versão que eu conhecia, a criatura está mais próxima de uma sereia da terra, que atraí homens para a mata com seu canto e se alimenta deles. Para ver essa versão, deixo este e este link.
2 - Este aqui, por outro lado, foi uma novidade. Um misto de saci com curupira, “El Duende” faz parte do folclore latino americano e pode ser tanto um ser benigno quanto travesso. A referência segue aqui.
3 - Uma marca de acessórios colombiana.
E esta foi a nossa creepypasta de hoje.
Particularmente, gosto muito do senso de urgência que o autor conseguiu imprimir aqui. Não só isso, acho fantástico como ele conseguiu construir toda a história na segunda pessoa, por mais que isso tenha dificultado meu trabalho de tradução.
Digo isso porque, no inglês, em nenhum momento fica claro o gênero do protagonista, ou da protagonista da história, de modo que fiz meu melhor para tentar criar esse mesmo efeito no português - o que é algo bem difícil.
Isso me lembra, caso tenha curiosidade em ver como essa ideia pode ser aplicada em um conto, recomendo a leitura do conto Escrever publicado pela Fernanda Eggers lá no Despautada:
E já que estamos aqui, na minha outra news, fiz uma breve seleção com minhas 5 histórias favoritas do Spawn:
A creepypasta de hoje nos apresentou um pouco da cultura colombiana, trazendo uma visão dos mitos e lendas que temos na América Latina. Em 2023 escrevi o conto As Moradoras de Xochimilco, que aborda a lenda de La Llorona, para a antologia Lugares para jamais visitar, da Lendari.
O ebook se encontra disponível na Amazon e pode ser adquirido no link abaixo:
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Lembrando que, ao comprar por aqui, você vai estar dando um força para este que vos escreve.
E até próxima!






